segunda-feira, 13 de setembro de 2010

CONDUTA CRISTÃ - 4. MORALIDADE E PSICANÁLISE


Eu disse que só teremos uma sociedade cristã quan­do a maioria dos indivíduos for cristã. Isso, evidente­mente, não quer dizer que devemos adiar a ação social para um dia imaginário num futuro distante. Quer di­zer, isto sim, que devemos começar os dois trabalhos agora mesmo - (1) o trabalho de ver como aplicar em detalhe na sociedade moderna o preceito "faça aos ou­tros o que gostaria que fizessem para você"; e (2) o tra­balho de nos tornarmos pessoas que realmente aplica­riam esse preceito se soubessem como fazê-lo. Gostaria agora de começar a tecer considerações sobre a idéia cris­tã de um homem bom — as instruções cristãs para o uso da máquina humana.
Antes de entrar em detalhes, gostaria de fazer duas afirmações mais gerais. Em primeiro lugar, já que a mo­ral cristã pretende ser uma técnica para colocar a máqui­na humana em ordem, achei que você gostaria de saber como ela se relaciona com outra técnica que pretende a mesma coisa - a saber, a psicanálise.
Devemos fazer uma distinção bem clara entre duas coisas: a primeira delas, a teoria médica propriamente dita e a técnica da psicanálise; a segunda, a visão geral de mun­do que Freud e outros vieram acrescentar a ela. Essa se­gunda coisa - a filosofia de Freud - está em contradi­ção direta com a de outro grande psicólogo, Jung. Além disso, quando Freud descreve a terapêutica para casos de neurose, fala como um especialista no assunto; mas, quando discorre sobre filosofia geral, fala como um ama­dor. Portanto, é sensato ouvi-lo falar sobre um assunto, mas não sobre o outro — e é isso que eu faço. Ajo assim porque me dei conta de que, quando Freud discorre sobre assuntos que não são de sua especialidade e que por acaso eu conheço bem (como é o caso do assunto "linguagem"), ele não passa de um ignorante. A psicaná­lise em si mesma, porém, separada de todos os enxertos filosóficos feitos por Freud e por outros, não está de for­ma alguma em contradição com o cristianismo. Suas técnicas coincidem com as da moralidade cristã em al­guns aspectos, e seria recomendável que toda pessoa soubesse algo sobre o assunto: as duas técnicas, porém, não seguem o mesmo curso até o fim, já que seus propósi­tos são diferentes.
Quando um homem faz uma escolha moral, duas coisas estão envolvidas. Uma delas é o próprio ato da es­colha. A outra, os diversos sentimentos, impulsos etc. que fazem parte do seu perfil psicológico e constituem a matéria-prima de suas escolhas. Essa matéria-prima pode ser de dois tipos. Por um lado, pode ser o que chamamos de normal: pode consistir nos sentimentos que são co­muns a todos os homens. Ou, por outro lado, pode con­sistir em sentimentos antinaturais, provenientes de dis­túrbios em seu subconsciente. O medo de coisas efetiva­mente perigosas é um exemplo do primeiro tipo; o medo irracional de gatos ou aranhas é exemplo do segundo. O desejo de um homem por uma mulher é do primeiro. O desejo pervertido de um homem por outro homem, do segundo. Ora, o que a psicanálise se propõe a fazer é eliminar os sentimentos anormais, ou seja, dar ao homem uma matéria-prima melhor para os seus atos de escolha; a moralidade trata destes atos em si mesmos.
Vamos dar um exemplo. Imagine três homens que vão à guerra. Um deles tem o medo natural do perigo que qualquer pessoa tem, mas vence-o pelo esforço mo­ral e se torna corajoso. Vamos supor que os outros dois tenham, como resultado do que existe em seu subcons­ciente, um medo irracional e exagerado diante do qual nenhum esforço moral consegue ser bem-sucedido. Imagine que um psicanalista consiga curar os dois, ou seja, colocá-los de novo numa situação idêntica à do primeiro homem. É nesse momento em que o proble­ma psicanalítico está resolvido que começa o problema moral. Com a cura, os dois homens podem seguir cami­nhos bastante diferentes. O primeiro deles talvez diga: "Graças a Deus, me livrei daquelas baboseiras. Enfim poderei fazer o que sempre quis — servir ao meu país." O outro, porém, pode dizer: "Bem, estou muito con­tente por me sentir relativamente tranqüilo diante do perigo, mas isso não altera o fato de que estou, como sempre estive, determinado a pensar primeiro em mim e a deixar que outros camaradas façam o trabalho arris­cado sempre que eu puder. Aliás, um dos benefícios de me sentir menos aterrorizado é que consigo cuidar de mim de forma mais eficiente e ser bem mais esperto para esconder esse fato dos outros." A diferença entre os dois é puramente moral, e a psicanálise não tem mais nada a fazer a respeito. Por mais que ela melhore a matéria-prima do homem, resta ainda outra coisa: a livre escolha do ser humano, uma escolha real feita a partir do ma­terial com que ele depara. O homem pode dar primazia a si mesmo ou aos outros. E este livre-arbítrio é a única coisa da qual a moralidade se ocupa.
O mau material psicológico não é um pecado, mas uma doença. Não é motivo para arrependimento, mas algo a ser curado, o que, por sinal, é muito im­portante. Os seres humanos julgam uns aos outros pe­las ações externas. Deus os julga por suas escolhas mo­rais. Quando um neurótico com horror patológico a gatos se obriga, por um bom motivo, a pegar um deles no colo, é bem possível que aos olhos de Deus esteja demonstrando mais coragem que outro homem que re­cebesse a Victoria Cross (Condecoração militar britânica para atos de bravura). Quando um homem perver­tido desde a infância, durante a qual foi ensinado que a crueldade é correta, faz um pequeno gesto de bon­dade ou refreia-se de fazer um gesto cruel, correndo o risco de ser caçoado pelos seus companheiros, é possí­vel que, aos olhos de Deus, ele tenha feito mais do que nós faríamos se sacrificássemos nossa própria vida por um amigo.
Igualmente verdadeira é a possibilidade contrária. Há pessoas que parecem muito boas, mas fazem tão pouco uso de sua boa hereditariedade e de sua boa for­mação que acabam sendo piores que as que considera­mos perversas. Podemos dizer com certeza qual teria sido o nosso comportamento se sofrêssemos o estigma de um mau perfil psicológico e de uma má criação, com o agra­vante de subir ao poder, como um Himmler (Heirich Himmler (1900-1945), diretor da Gestapo e ministro do Interior durante o go­verno nazista na Alemanha, responsável pela aniquilação em massa de judeus durante a Segunda Guerra Mundial)? Esse é o motivo pelo qual os cristãos devem se abster de julgar. Só vemos o resultado das escolhas que os homens fa­zem a partir da matéria-prima de que dispõem. Deus, porém, não os julga por sua matéria-prima, mas pelo que fizeram com ela. Quase todo o arcabouço psicoló­gico do homem é derivado do corpo. Quando o corpo morrer, tudo isso desaparecerá, e o verdadeiro homem interior, aquele que escolhe e que pode fazer o melhor ou o pior com o material disponível, estará de pé, nu. Todas as coisas boas que pensávamos serem nossas, mas que não passavam do fruto de uma boa fisiologia, se­rão separadas de alguns de nós; e toda a sorte de coisas más, resultantes de complexos ou de uma saúde precária, serão separadas de outros. Veremos, então, pela primeira vez, cada qual como realmente era. Haverá surpresas.Isso me traz à segunda questão. As pessoas normal­mente encaram a moral cristã como uma espécie de bar­ganha, na qual Deus diz: "Se você seguir uma série de regras, vou recompensá-lo; se não seguir, farei o con­trário." Não creio que essa seja a melhor forma de ver as coisas. Seria melhor dizer que, toda vez que tomamos uma decisão, tornamos um pouco diferente a parte cen­tral do nosso ser, a responsável pela decisão tomada. Considerando então nossa vida como um todo, com as inúmeras escolhas feitas ao longo do caminho, aos pou­cos vamos tornando esse elemento central numa criatura celeste ou numa criatura infernal: uma criatura em harmonia com Deus, com as outras criaturas e consigo mesma, ou uma criatura cheia de ódio e em pé de guer­ra com Deus, com as outras criaturas e consigo mesma. Ser uma criatura do primeiro tipo é o paraíso, é alegria, paz, conhecimento e poder. Ser do segundo tipo é a loucura, o horror, a idiotia, a raiva, a impotência e a so­lidão eterna. Cada um de nós, a cada momento, pro­gride em direção a um estado ou ao outro.
Isso explica o que sempre me causou perplexidade a respeito dos autores cristãos, tão rígidos num sentido e tão liberais e abertos em outro. Às vezes falam de me­ros pecados de pensamento como se fossem imensamen­te escandalosos; no momento seguinte, falam dos mais terríveis assassinatos e traições como se fossem algo do qual basta o arrependimento para se obter o perdão. Aca­bei por me convencer de que estão com a razão. Sua preocupação constante é a marca deixada por nossas ações na parte mais minúscula, mas central de nós mesmos, a parte que ninguém pode enxergar nessa vida, mas que cada um de nós terá de suportar — ou poderá fruir — para sempre. Um homem pode estar colocado nesta vida de tal modo que sua ira o leve a derramar o sangue de mi­lhares de seus semelhantes, e outro pode encontrar-se numa situação tal que, por mais irado que fique, só consegue ser motivo de chacota; a pequena marca deixada na alma, porém, pode ser a mesma num caso e no outro. Cada um deles deixou uma marca em si mesmo. A não ser que se arrependam, terão mais dificuldade para resistir à ira na próxima vez em que forem tentados, e cairão numa ira pior a cada vez que cederem à tenta­ção. Cada um deles, caso se volte seriamente para Deus, pode endireitar de novo essa deformação do homem interior; caso não se voltem, ambos estarão, a longo pra­zo, condenados. A grandeza ou pequenez do ato, visto de fora, não é o que realmente importa.
Uma última questão. Lembre-se de que, como eu dis­se, a caminhada na direção certa leva não só à paz, mas também ao conhecimento. Quando um homem melhora, torna-se cada vez mais capaz de perceber o mal que ainda existe dentro de si. Quando um homem piora, torna-se cada vez menos capaz de captar a própria maldade. Um homem moderadamente mau sabe que não é muito bom; um homem completamente mau acha que está coberto de razão. Nós sabemos disso intuitivamente. Entendemos o sono quando estamos acordados, não quando adorme­cidos. Percebemos os erros de aritmética quando nossa mente está funcionando direito, não no momento em que os cometemos. Compreendemos a natureza da em­briaguez quando estamos sóbrios, não quando bêbados. As pessoas boas conhecem tanto o bem quanto o mal; as pessoas más não conhecem nenhum dos dois.
C.S.LEWIS

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